Vidas suspensas

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Vidas suspensas

Artigo JJ Camargo

 

 A construção básica de felicidade começa com autonomia. Nada nos deixa mais vulneráveis do que a sensação prolongada ou permanente de dependência, qualquer que seja, emocional, física, afetiva ou econômica. Se esta dependência for por coisas materiais, ela pode manter-nos em estado de constante aflição porque, afinal, não dá para ser feliz permanentemente acuado pelo assédio dos credores. Mas sempre será possível dar a volta e libertar-se, reforçando a convicção de que uma das maravilhas de se ter dinheiro é a naturalidade de podermos, por exemplo, expressar a nossa opinião, mesmo correndo o risco de perder o maldito emprego. Um grande e inesperado choque para os muito ricos, que por um golpe do destino foram colocados numa lista de espera para transplante, é descobrir-se pela primeira vez impotente, porque ali o futuro não pode ser comprado, e pior do que isso, a sobrevivência depende da generosidade alheia, este sentimento sempre visto por eles como uma evidência de fraqueza.

Nestes 30 anos trabalhando com transplante de pulmão, fui algumas vezes apresentado a uma forma insólita e atroz de humilhação: aquela que não depende do quanto podemos comprar, mas a que resulta da submissão à opinião dos outros porque, por falta de fôlego, perdemos a condição de argumentar, e ofegantes e desmoralizados, nos submetemos. Neste ano da peste, houve uma queda substancial dos doadores em todo o mundo e tem sido uma experiência dramática o convívio com os pacientes da lista de espera, que foram perdendo parceiros pelo caminho, aumentando a angústia de quem já se estressava pela espera indefinida, agora agravada pela informação de que a roda tinha parado de girar. É duro compartilhar esta premência com quem está correndo contra o tempo, em que cada semana que passa significa a redução da chance de se conseguir um doador, e onde a escassez das doações de órgãos é sentida como uma peça solta na engrenagem da esperança. A queda dos transplantes dos diferentes órgãos variou de 26% a 60%, para desespero de 60 mil brasileiros.

O que se aguarda com sofreguidão é que a retomada da vida interrompida coloque a sociedade nos trilhos, que viver se imponha como prioridade, e que voltemos a pensar na dor dos outros, esses anônimos que tem sonhos iguais aos nossos e necessitam desesperadamente da nossa solidariedade para continuar a viver e sonhar.

A Nathaly tem 40 anos e um sonho: “Tudo que eu mais quero é ficar boa, vacinar logo e conseguir realizar o transplante, que a cada dia parece mais longe. Só quero poder cantar uma música, terminar uma frase sem tossir, tomar um banho demorado sem sufocar, ir à praia sem me preocupar se vou conseguir caminhar do mar até onde está a barraca, poder voltar a sair na rua sozinha sem medo de passar mal, amarrar o tênis sem parecer que corri uma maratona. Enfim, eu só quero respirar, sem ter que convencer meu pulmãozinho que se ele não permitir que o ar entre, morremos os dois.”

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