O risco do deslumbramento

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O risco do deslumbramento

Artigo JJ Camargo

 

 Duas coisas impressionam mais do que o quanto mudamos em função da pandemia: a rapidez com que nos transformamos em seres cibernéticos e a euforia com que assimilamos essas mudanças. 

Não há reunião das Academias que frequento em que não se comemore os fantásticos benefícios das modernas plataformas digitais que permitem colocar algumas centenas de participantes em salas virtuais, ocupadas, na era presencial, por 3-4 dezenas de confrades. Outra descoberta fascinante foi a possibilidade de trazer, semanalmente, para o nosso “convívio”, pessoas do outro lado do mundo, cujas presenças significavam investimentos, que exigiam patrocinadores, nos congressos anuais, que justificavam a contratação de agentes especializados em acomodação e logística. De repente, do nada, um ser (?) acelular, chega sem ser convidado, vira para baixo, o mundo e as nossas cabeças, e aprendemos que tudo o que precisamos para encher o monitor com alguém famoso numa determinada área é que um amigo seu na Academia faça uma chamada pelo WhatsApp (menos invasivo e custo zero) e o convide para participar em alguma gloriosa quinta-feira do futuro próximo.

Um dia desses alguém questionou quantas semanas mais precisaríamos para voltar às nossas reuniões presenciais, e uma voz se levantou para propor que o melhor seria que considerássemos esta hipótese apenas para o próximo ano, e o número de apoiadores foi tão maciço, que a ponderação de, quem sabe, organizarmos, ao menos, reuniões híbridas, não passou de um sussurro.

Tudo parecia naturalmente festejável aos olhos dos médicos que já lograram ser o que pretenderam. Foi quando começamos a discutir a formação dos jovens que ainda nem tem ideia de que médicos serão. E naturalmente, o quanto serão felizes, porque este objetivo nenhuma pandemia mudará.

E então, correndo todos os riscos de ser considerado jurássico, anuncio minha convicção: não é possível aprender a ser médico por ensino à distância. Os planos de saúde defendem encantados a telemedicina como a forma mais moderna de atendimento médico, o que é compreensível do ponto de vista empresarial, face ao baixo custo, mas impensável se considerarmos as necessidades pessoais de alguém fragilizado pela doença e que, no seu desespero, nunca aprenderá a abraçar o computador.

Logo depois dos gestores, competem em entusiasmo, como era de se prever, os simulacros de médicos, esses que não tem paciência para ouvir os pacientes e que festejam estarem sempre a um clique de se livrarem deles.

A telemedicina é um recurso maravilhoso que permite dissipar dúvida, discutir situações específicas com colegas de especialidade, solicitar exames e avaliar resultados, mas ela falha estrondosamente na oferta de um sentimento indispensável na relação entre duas pessoas, estando uma delas assustada: a compaixão. E sem este sentimento, que nenhuma máquina conseguirá reproduzir, ficaremos alijados do seu subproduto mais nobre: a gratidão. E com estas duas perdas, nada nos distinguirá de uma máquina, que pode ser genialmente construída, mas que será sempre e apenas isso: uma máquina.

Talvez seja adequado inquirir os pacientes sobre qual tipo de máquina eles escolheriam. Ou, de tão deslumbrados, esquecemos que a opinião deles é a mais importante na seleção do modelo?

JJ Camargo

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