Um currículo extenso como médico e pesquisador e uma carreira sólida no associativismo médico: essas foram algumas das experiências que credenciaram o diretor da Associação Médica Brasileira (AMB), Miguel Jorge, à presidência da Associação Médica Mundial (WMA), cargo que assume efetivamente nesta sexta-feira (25). A eleição foi realizada em outubro de 2018 durante a Assembleia Geral Anual da WMA em Reykjavik, na Islândia.
Na entrevista a seguir, Miguel Jorge, que passa a representar mais de 10 milhões de médicos pelo mundo, fala sobre os desafios que projeta enfrentar a frente da WMA, da necessidade de fortalecer a relação médico-paciente e sobre o impacto de ter um brasileiro à frente da entidade.
1- O cargo de presidente na WMA é realizado em três etapas: um ano como presidente eleito, o segundo ano como presidente e o terceiro, ex-presidente imediato. O que diferencia cada uma dessas fases?
Miguel Jorge – Na verdade, o ano que de alguma forma é mais trabalhoso obviamente é o ano em que se está efetivamente no cargo. A presidência da Associação Médica Mundial é mais um cargo de representação do que propriamente executivo. Nós temos na Associação Médica Mundial um secretário geral médico, que é uma pessoa contratada para tocar o dia a dia da associação.
Então, na verdade, o cargo de presidente durante esses três anos é uma oportunidade de levar a voz da região de onde a gente vem para dentro da diretoria da Associação Médica Mundial. E obviamente, no ano em que efetivamente se está exercendo a presidência, comparecer aos eventos a convite das associações médicas nacionais e poder transmitir a mensagem que, de alguma maneira, nós pretendemos passar como representantes da medicina brasileira.
2- E como foi a experiência no primeiro ano, como presidente eleito?
Miguel Jorge – Esse primeiro ano que eu acabo de encerrar como presidente eleito foi um ano muito interessante, no qual eu já tive a oportunidade de participar de alguns eventos representando a Associação Médica Mundial ou junto com outros diretores da associação. Talvez o mais importante deles tenha sido o último, ocorrido em junho, quando no Japão, antecedendo a reunião do G20, ou seja, a reunião dos chefes de estado das 20 maiores economias do mundo, a WMA, junto com a Associação Médica do Japão, promoveram um evento para discutir uma declaração defendendo a adoção por parte dos países de um programa universal de cobertura de saúde para todos.
Obviamente que as dificuldades para tanto, semelhante ao que podemos ver no Brasil com o nosso SUS, são imensas. Mas, esse é o modelo que nós temos que perseguir, no sentido de tentar oferecer saúde para largos contingentes da população dos países, onde, de alguma forma, ele venha a ser adotado.
3- Daqui em diante, qual será o foco da sua atuação como presidente efetivo da WMA?
Miguel Jorge – Quando a gente é eleito presidente da Associação Médica Mundial, nós escolhemos um tema que pretendemos enfatizar durante o período. Não é um tema a ser priorizado pela WMA, mas é um tema a ser enfatizado pelo presidente. Eu, como psiquiatra, escolhi como tema a ser enfatizado durante o ano da minha presidência a revalorização da relação médico-paciente.
Obviamente que essa relação vem sofrendo em função de muitos fatores relativos às más condições de trabalho, de fatores relativos às inovações tecnológicas, que muitas vezes, acabam ganhando mais atenção do médico do que o próprio paciente. Enfim, uma série de fatores que têm contribuído para a desumanização do atendimento médico e relegado para segundo plano a relação médico-paciente.
Nós entendemos que ouvir o paciente, ganhar a confiança e estar ao lado dele no momento em que está sofrendo em função de alguma doença enfrentada é um dos papéis primordiais do exercício da medicina.
4- Qual é o impacto para a medicina nacional em ter um brasileiro como presidente da WMA?
Miguel Jorge – Ter um brasileiro na presidência da Associação Médica Mundial é, antes de mais nada, um reconhecimento das contribuições que a medicina brasileira vem dando aos trabalhos e atividades da WMA, por meio da Associação Médica Brasileira.
Obviamente que esse reconhecimento não se efetivaria se não houvesse algum tipo de contribuição da própria medicina brasileira para a saúde do mundo todo. O Brasil hoje certamente é um País que se destaca por uma liderança na América Latina e uma boa figura no mundo, com relação às pesquisas que realiza na área da saúde e os avanços que a medicina vem experimentando em função desta evolução da medicina brasileira.
Estar na presidência da Associação Médica Mundial me torna responsável, de alguma forma, por representar a nossa medicina e divulgar o que de bom temos em nosso país, além de contribuir com as discussões e levar a opinião do nosso País para temas que, muitas vezes, são polêmicos dentro da WMA.
5- O senhor citou no ano passado que um dos grandes desafios na área da saúde é melhorar o acesso e a qualidade da assistência prestada à população, o que inclui melhorar as condições de trabalho do médico. Na sua visão o que falta no Brasil para haver condições ideais de trabalho?
Miguel Jorge – Fazer com que o médico tenha boas condições de trabalho é fundamental para um bom exercício da medicina. Isso não é o suficiente, mas é uma condição absolutamente necessária. Infelizmente, em muitos rincões do País e mesmo em lugares bem assistidos, como grandes capitais, nem sempre há essa possibilidade de oferta de um bom trabalho médico.
Eu vejo com bastante preocupação a abertura indiscriminada de escolas médicas sem a menor condição de funcionamento. Nós não temos professores em número suficiente no País para ensinar tanta gente. Nós não temos serviços de qualidade, onde os alunos possam ser treinados. Certamente isso nos preocupa, do ponto de vista do quanto fará com que a qualidade do que o médico tem para oferecer decairá nos próximos anos.
Além disso, a falta de uma Carreira de Estado, na semelhança do que acontece no Poder Judiciário, atendendo aos magistrados e promotores, é algo que efetivamente compromete bastante a possibilidade de médicos, principalmente os mais jovens, se estabelecerem por alguns poucos anos em lugares remotos.
Acho que essas situações contribuiriam e muito para a melhoria da qualidade da atenção que o médico oferece no Brasil. Também não temos vagas em residência médica suficiente para treinar essas pessoas. É absolutamente fundamental complementar o aprendizado que eles têm nas escolas médicas. Nada disso é suficiente, mas tudo isso é necessário.
6- Em qual patamar podemos posicionar o Brasil hoje no contexto da medicina mundial, especialmente em relação às condições de trabalho dos médicos e da qualidade do atendimento à população?
Miguel Jorge – Nós vivemos um certo paradoxo no Brasil sobre as condições de trabalho oferecidas hoje para os médicos, à semelhança do que acontece com outras áreas para além da medicina. Há, certamente, parcelas da população extremamente bem atendidas e há parcelas da população com um atendimento insuficiente, de má qualidade ou mesmo com nenhum atendimento.
Então, entender e comparar o Brasil com outros países do mundo não é uma situação fácil, ainda que, em muitos países, situações semelhantes são vividas. Há países no mundo em que predomina a falta de assistência médica por uma carência de pessoal, carência de condições. E há outros que a qualidade de condições de trabalho são melhores, mas não para toda a população.
Em todos os países nós teremos sempre pessoas que têm acesso a uma atenção de maior qualidade e uma atenção de menor qualidade. A questão fundamental é: quanto por cento da população tem uma atenção de boa qualidade? Quanto por cento da população tem uma atenção de má qualidade ou não tem atenção? Isso, obviamente, é bastante variável, dependendo das condições socioeconômicas de cada País.
7- Como sua experiência como diretor da AMB e da Associação Mundial de Psiquiatria vai contribuir para sua atuação na WMA?
Miguel Jorge – Eu estive durante seis anos como diretor da Associação Mundial de Psiquiatria, depois de uma carreira feita dentro da Associação Brasileira de Psiquiatria e nas representações regionais da psiquiatria brasileira. Isso me deu uma experiencia, do ponto de vista do trabalho na arena internacional, bastante grande e fez com que, alguns anos em seguida, eu pudesse trabalhar na Associação Médica Brasileira, inicialmente como diretor de Relações Internacionais e, hoje, como membro da diretoria executiva.
Durante os últimos onze anos eu tenho participado, em nome da AMB, das atividades da Associação Mundial de Psiquiatria, da Confemel, que é a Confederação de Entidades Médicas da América Latina, e isso me faz ter uma visão bastante abrangente do que acontece em termos da assistência médica, da medicina no mundo como um todo e em alguns países em particular.
Certamente, a experiencia acumulada ao longo de pelo menos duas décadas de trabalho internacional fará com que eu tenha mais condições de contribuir para os trabalhos da WMA do que já fiz até agora, até recentemente quando eu coordenava o principal comitê da WMA, aquele que lida com o maior número de assuntos da área médica, o comitê de assuntos médicos sociais. Então, espero continuar isso nos próximos dois anos, o primeiro deles agora como presidente e depois como presidente recém-saído do cargo.
8- Fique à vontade para enviar uma mensagem aos médicos brasileiros como presidente efetivo da WMA.
Miguel Jorge – A mensagem que eu gostaria de enviar aos meus colegas brasileiros, agora na qualidade de presidente da Associação Médica Mundial, é para que eles voltem os seus olhos e a sua atenção para os seus pacientes. Muitas vezes, a gente experimenta muitas limitações no nosso trabalho e, com isso, a gente pode oferecer alguma coisa para o nosso paciente, que espera de nós mais do que simplesmente uma prescrição ou ser submetido a um determinado procedimento, diagnóstico ou terapêutico.
Estejamos ao lado dos nossos pacientes, sejam esses pacientes os de maior poder aquisitivo, sejam esses pacientes os de menor poder aquisitivo. Tratemos a todos com igualdade. As pessoas que nos procuram querem, antes de mais nada, serem vistas por inteiro, como pessoas e seres humanos que são, com necessidades, mesmo que não possamos atender a todas.
Mas, estando ao seu lado, tocando os nossos pacientes, olhando nos seus olhos, nos dirigindo a eles e ouvindo-os, mais do que qualquer coisa, isso já é um enorme benefício que nós podemos fazer a eles. Se eu tenho uma mensagem para passar para os meus colegas brasileiros, é isso que eu gostaria nesse momento de priorizar.
Fonte: Ascom AMB
Foto: Divulgação AMB
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