Juntando os cacos

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Juntando os cacos

Artigo: JJ Camargo

“Eu preciso de um médico que trate a alma das pessoas! Podes me indicar alguém?”. Esta frase foi colocada logo depois do “Em que posso lhe ajudar” quase sempre acrescido do recomendável “Eu preciso saber um pouco mais, então me conte o que você só contaria ao seu melhor amigo!”.

Esta consulta pode ter acontecido ou, simplesmente imaginada, como introdução para discutir uma situação comum nestes tempos ásperos de irritação coletiva, com todo mundo exasperado pelo demora do fim dessa pandemia, e alguns ironizando que o pico da doença está previsto para o final de 2021, ou não. O certo é que esta experiência insólita de temor coletivo mexeu com as pessoas de uma maneira inusitada, constrangendo os pretensos poderosos com a democratização do medo, esse sentimento que melhor define a nossa vulnerabilidade.

O confinamento, desde cedo começou a cobrar seu preço, e a proximidade sem tréguas, nem as novidades trazidas da rua, resgatou mágoas represadas e estimulou um previsível acerto de contas, e muitos casamentos ruíram porque um acabou dizendo “o que precisava ser dito”, e o outro, sempre tolerante, agora como um animal ferido e enjaulado, retribuiu. Outros, sem ânimo para dissecção de relações eternizadas pela mesmice, se deram conta do quanto estavam desorganizados e, com a morte sempre rondando por perto, ficaram chocados com a consciência de não estarem prontos.

Esses cenários resumidos aqui e tantas vezes levados pelos pacientes aos consultórios dos médicos, uns tipos retrógrados, que consideram que ouvir é uma parte essencial da relação entre duas pessoas, ainda que a doença de uma delas não provoque nenhuma dor física.

A expressão de extremo descompasso afetivo justifica a demanda por divórcios, e a insegurança em relação a um futuro sem limites estabelecidos, tem multiplicado o trabalho dos cartórios onde desaguam os processos dos requerentes de testamentos, pelos tipos que recém descobriram a finitude, sempre mantida distante, como se fosse uma improbabilidade.

Com as glamourosas estratégias de comunicação virtual tendo atingido os seus limites de competência, ninguém mais aguenta abraços virtuais nem a tela de computador cheia de carinhas amorfas, olhando pra lugar nenhum e sempre alguém perguntando: “Vocês me ouvem?”.

É certo que sairemos dessa pandemia mais espertos em comunicação remota, mas o retorno à vida que consideramos, de fato, normal vai nos encontrar muito diferentes. E tomara que melhores. Para não deixar a minha paciente do início desta crônica sem resposta digo que não tenho ideia de para quem encaminhá-la, mas pode me ligar se a solidão parecer insuportável. Sei que vai ser difícil assimilar tantas perdas, mas confio que passar por uma experiência tão surreal também é viver. E com uma intensidade insuspeitada no nosso antigo modelo de convívio despreocupado.

Historicamente as tragédias são transformadoras, e pode ser que no fim de tudo, cheguemos à conclusão que as nossas vidas já estavam a exigir uma mudança desde antes da doença. Talvez o mais chocante acabe sendo o quanto demoramos para perceber esta necessidade. Então, vamos juntar os cacos e recomeçar. Por absoluta falta de alternativas.

Artigo: JJ Camargo

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