O que ainda está vivo em nós

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O que ainda está vivo em nós

A maneira mais primitiva de estancar o sofrimento físico, que historicamente tem sido a interrupção da consciência, vem sendo gradativamente substituída pela terapia de manipulação da sensibilidade, de tal maneira que o paciente deixe de receber os estímulos dolorosos, ou passe a não percebê-los como desagradáveis. Este tem sido um dos prodígios dos laboratórios de realidade virtual que começaram como tratamento de distúrbios psiquiátricos, como síndrome do pânico, e medo de se achar só em um lugar aberto (agorafobia), e se estenderam para controle de dores fantasmas e crises de depressão associadas à abandono e solidão.

Velhinhos deprimidos em casas de repouso, colocados em ambientes virtuais, são “levados a passear” em lugares maravilhosos com paisagens deslumbrantes e “voltam” encantados e adormecem sorrindo e dispensam os anti-hipertensivos e as drogas convencionais que lhes impunha um sono forçado e sem sonhos. Mais modernamente, estes recursos têm sido usados no tratamento de dores excruciantes, para as quais nem os opiódes funcionam bem. Uma dessas situações, é vivenciada repetidamente em clínicas de queimados, onde as trocas diárias das bandagens protetoras e a remoção das crostas de tecido morto, provocam as dores mais terríveis que um ser humano possa suportar, sem desmaiar.

Na última década, neurocientistas da Washington University, resolveram testar um videogame chamado Snow word, no qual o jogador se vê num campo gelado, e tem que correr se livrando de bolas de neve e ursos e pinguins. A concentração exigida, demanda uma tal abstração dos sentidos, que os pacientes não requerem analgésicos durante os procedimentos sabidamente dolorosos, e o efeito antálgico é superior ao da morfina. A percepção atual é que estamos apenas engatinhando no controle das nossas sensações, primitivas como dor, ou sofisticadas, como nostalgia e solidão.

Num lar de idosos, a Sra. Mildred era uma das pacientes mais antigas com sinais inequívocos de Doença de Alzheimer. Seu quarto ficava no fim do corredor, um pouco antes da cozinha, e ela passava a maior parte do dia dormindo. Uma tarde despertou agitada e insistia que queria porque queria falar com a sua mãe. Quando alguém disse, que a mãe não estava, ela replicou: “Não tente me enganar, só minha mãe faz roscas com este cheiro!”

Na ala oncológica do hospital, a dona Sonia anoiteceu agitada. Usando doses maciças de corticoides para tratar um edema decorrente de metástases cerebrais múltiplas, vinha apresentando períodos de desorientação alternados com consciência plena, e exigindo doses crescentes de hipnóticos para dormir, o que angustiava os plantonistas, sempre inseguros com a faixa estreita da sedação adequada e a ameaça da depressão respiratória. A enfermeira de plantão, uma das queridas da dona Sonia, tentou acalmá-la sem sucesso.

Então começou a chover e ela se afastou para fechar as janelas, que davam para o pátio interno. Quando voltou, encontrou o quarto em silêncio, e a velhinha dormindo com um sorriso nos lábios. Na manhã seguinte, quando quis saber como passara a noite, ela confessou: “Foi maravilhosa. Esta parte do pavilhão tem teto de zinco, como a casa da minha avó. Então quando comecei a ouvir o barulho da chuva, tratei de dormir para sonhar com ela!” Difícil determinar o quanto ainda havia ali de vida disponível. Os apressados diriam que nada, mas com certeza havia. A delicada morte dos sentidos sim, é o anúncio mais sutil do fim de todas as coisas.

Autor: J.J Camargo

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